*Sírio Possenti
De Campinas (SP)
Há livros interessantíssimos de divulgação científica. Mesmo não
sendo especialista, um leitor pode descobrir aspectos filosóficos de
relevo no curso do desenvolvimento da ciência. Uma das lições mais
óbvias é que a ciência avança destruindo erros.
Um caso muito curioso é a progressiva demolição do modelo
ptolemaico do universo que, para explicar o movimento dos planetas (e
outras coisas), precisava de regras complexíssimas. Copernico e Kepler
mostraram que um modelo bem mais simples explicava muito mais coisas
(depois Newton deu um acabamento especial, com suas conhecidas). Mas,
para funcionar - isto é, para ser compreendido - o modelo exigiu uma
mudança fundamental de atitude: deixar de acreditar que a Terra está no
centro do Universo (e que é plana etc.). Devia-se começar a explicar as
coisas de outro ponto de vista, começando de novo, num certo sentido.
Pode-se dizer que ocorrem fenômenos análogos em relação ao estudo
das línguas. A meu ver, muita gente não olha para a língua de um lugar
errado. O equívoco mais comum diz respeito à natureza da gramática.
Muitos acham que as gramáticas são conjuntos de regras que os gramáticos
inventaram e que todos devem seguir (por isso se pede que eles
simplifiquem as coisas...). Mas ela é uma coisa completamente diferente.
Ela não está no começo deste ciclo. Antes das gramáticas vêm os
escritores (ou os falantes). Assim, uma gramática informa quais são as
regras que os escritores seguiram, e não as que devem seguir. Os
gramáticos descobrem as regras analisando dados, que são os textos dos
escritores - assim como os astrônomos descobrem regras observando o
céu...
Esse exemplo mais típico só vale, é claro, para sociedades em que
se escreve. Naquelas em que não se escreve, fazer uma gramática
significa observar como os falantes falam e procurar organizar as regras
que explicam o que eles fazem quando falam (se todos dizem o boi, a
mãe, a casa, o bobo etc. o gramático dirá que o artigo vem antes do
nome).
Supor que as regras da língua são inventadas pelas gramáticas e
impostas aos escritores e aos falantes seria como imaginar que um
astrônomo define a órbita dos astros e que estes são obrigados a
segui-la (sob pena de serem reprovados ou considerados errados).
Se entendemos as gramáticas olhando daqui para lá e não de lá
para cá (da língua para a gramática e não da gramática para a língua),
então podemos pensar que uma língua como a nossa permite construir
diferentes gramáticas - da língua escrita e da falada. É que os
escritores não seguem sempre as mesmas regras. Não só elas variam em
séculos diferentes, mas mesmo em gêneros diferentes na mesma época.
Escritores realistas não escrevem como os românticos, os romancistas não
escrevem como os poetas, e nenhum deles escreve como os tabeliães e os
bioquímicos.
Não só se pode fazer gramáticas da modalidade falada de uma
língua, como se pode fazê-las de todas as suas variedades, nas diversas
regiões de um país. Mattoso Câmara, por exemplo, descreveu a fonologia
do português culto falado informalmente no Rio de seu tempo. Observando
os dados, pode-se descobrir (este é um fato tão observável quanto as
mudança das fases da lua) que muita gente diz pra mim ler, mas que
ninguém diz mim vou ou mim vai.
Descobrindo fatos como este, observado sistematicamente (mim
nunca é sujeito em orações iniciais; só em subordinadas, e depois de
para), pode-se tentar explicá-lo, assim como os físicos tentam explicar
por que a bola é mais rápida a 4000 metros de altitude do que ao nível
do mar (aliás, os físicos acham esquisito que os narradores de futebol
digam que, quando a bola quica, sua velocidade aumenta, porque, não
havendo outro impulso - outra força que impulsione a bola -, a
velocidade não pode aumentar. Mas os narradores continuam dizendo a
mesma besteira - como dizem outras sobre língua...).
Se entendêssemos que os fatos lingüísticos são simplesmente
fatos, e que o papel das gramáticas é explicá-los, não diríamos mais que
as pessoas falam errado, ou que falam de qualquer jeito. Melhor:
entenderíamos que, quando dizemos que uma pessoa fala errado, operando
em dois níveis de avaliação: a) o nível gramatical - que descreve as
regras; b) o nível social eou histórico, segundo o qual ter um
determinado comportamento lingüístico é certo ou errado. Ficaria claro
que este critério é social eou histórico, e não gramatical.
Este critério deixa claro que certas construções que já foram
consideradas corretas não o são mais. Por exemplo: pessuir foi a forma
antiga do verbo possuir; Camões escreveu o mar que dos feos focas se
navega, mas hoje escreveria o mar que é navegado pelas focas feias,
porque hoje foca é feminino e não ocorrem mais passivas com de (deixo de
comentar o se); hoje a preposição é por.
Uma nota sobre a escrita, para esclarecer outro aspecto:
entenderíamos muito melhor o que se faz no mundo da escrita se, em vez
de condenar ou aprovar determinadas formas, observássemos o que
acontece. Um dos fatos é o seguinte: as editoras (e as redações de
jornais) têm seus próprios manuais, que ora são mais ou ora menos
parecidos com as gramáticas, mas nunca são iguais. Uma editora precisa
tomar cuidados especiais quando faz revisões, porque não é a mesma coisa
revisar um livro de história, um de poesia e um romance. Já imaginaram
corrigir a sintaxe de Dalton Trevisan (para nem mencionar Guimarães
Rosa)?
Pensemos no exemplo do jornal, uma espécie de microcosmo do mundo
da escrita: quem redige um editorial se obriga a seguir mais
rigorosamente um padrão ideal do que quem escreve fofocas. E quem redige
os pequenos anúncios não pode escrever certo. Este deve escrever assim:
Cond. Fech Chac nova 3st sl3 ambs churr. Pisc qd tênis, mini-cpo,
1500m²terr, alto, plano R$70mil entr, saldo 36x ac. autoimov. SP ou ABC
(é um anúncio real, que copiei de um jornal bem conservador!).
Com um novo olhar, compreenderíamos muito melhor o que é uma
língua e como ela funciona numa sociedade. Esqueceríamos, por serem
inadequados, critérios exclusivos do tipo pode não pode ou certo
errado. Talvez fôssemos mais bem sucedidos até mesmo nos projetos
escolares. As ênfases mudariam, os resultados seriam muito mais
interessantes.
O leitor imagine agora que ainda achamos que a Terra está no
centro do sistema e que as coisas queimam porque liberam flogisto. Pois
bem: ainda estamos estudando as línguas com esta cabeça.
PS a) Dizer que a pronúncia muyé existe não é a mesma coisa que
dizer que é válida. Mas o que quer dizer exatamente pronúncia válida?
Autorizada? Por quem? Em qual contexto? Quem não conhece Cuitelinho,
cheio de formas análogas? E não me venham dizer que não é uma letra
válida...
b) Um leitor escreveu que não se diz os brasileiros vão votar.
Não se diz significa não se diz (uma construção que não ocorre) ou não
se deve dizer?
c) Dizer que, em Está cheio de meninos na praia, cheio concorda
com no local, como escreveu um leitor, é cometer dois erros: 1) no local
não está na oração; 2) no local é um locativo, e, como tal, não recebe
concordância...
d) Lula igualou presos comuns a presos políticos. Ficam pegando
no pé dele por questiúnculas de concordância, quando o grave são certos
raciocínios que o presidente produz, com falhas lamentáveis. No caso,
compara o incomparável. Faz uma analogia insuportável. Não sei se ele se
dá conta. Se sim, é imperdoável. Se não, é imperdoável.
Sírio Possenti é professor associado do Departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.
Fale com Sírio Possenti:
\n >
siriopossenti@terra.com.br
Retirada de: Stetella Bortoni.com
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