Por Marcos Bagno (*)
Dia desses, uma gaúcha veio me contar, entusiasmada, que tinha aberto
uma escola de línguas em Porto Alegre, que não queria se limitar ao
ensino das línguas europeias (inglês, francês, espanhol, italiano,
alemão) mas pensava em oferecer também o iorubá, para ser uma escola
“politicamente correta”, que contemple as línguas que “influenciaram” o
português brasileiro.
Pensei com meus botões: “Mais uma iludida”.
O desconhecimento, por parte da maioria dos brasileiros, inclusive
linguistas profissionais, da história linguística do nosso país é
impressionante. Quando, com base nos excelentes estudos de Yeda Pessoa
de Castro, digo às pessoas que, das línguas africanas trazidas para cá
com o tráfico de escravos, a que menos impacto exerceu sobre o português
brasileiro foi o iorubá, as reações costumam ir da surpresa à
indignação.
O iorubá é uma língua oeste-africana. Seus falantes só começaram a ser
trazidos para o Brasil no final do século XVIII, com a destruição do
reino de Queto, e também depois de 1830, quando foi arrasado o império
de Oió.
Ficaram concentrados nas zonas litorâneas, com especial destaque para a
região do Recôncavo baiano. Com os falantes de iorubá e de outras
línguas oeste-africanas vieram os cultos religiosos que se tornaram
conhecidos como candomblé.
Por causa do prestígio cultural que essas manifestações religiosas
alcançaram é que se fixou, entre nós, o mito de que o iorubá é a
principal (quando não a única!) língua africana que exerceu “influência”
sobre o português brasileiro.
Desse mito decorrem inúmeras distorções como, por exemplo, a do filme
“Quilombo”, de Cacá Diegues (1984), em que Zumbi dos Palmares e demais
quilombolas falam iorubá, em pleno século XVII, quando ainda não tinham
chegado ao Brasil os falantes dessa língua. O mesmo se pode dizer dos
inúmeros cursos de iorubá oferecidos Brasil afora e que muitas pessoas
vão frequentar na crença de que, assim, se aproximariam mais das raízes
africanas da nossa população e da nossa cultura.
Ora, as línguas que de fato mais confluíram para a formação do
português brasileiro são de uma outra família, a família chamada banto.
São de línguas bantas (quicongo, quimbundo, umbundo) a maioria dos
escravos trazidos a partir do século XVII e que serão distribuídos por
todo o território brasileiro.
A antiguidade da presença dos bantos é que explica a grande quantidade
de vocábulos plenamente integrados ao falar brasileiro do dia-a-dia e
referentes aos mais diversos campos da vida humana. As palavras do
iorubá que empregamos, por outro lado, se referem quase exclusivamente
ao universo religioso e têm uma difusão muito mais restrita
geograficamente.
Com isso, se quisermos de fato nos aproximar das nossas raízes
africanas mais profundas, é nas línguas do grupo banto que devemos
procurá-las. É delas que vêm, entre tantas outras, as já
brasileiríssimas caçula, carimbo, cachaça, dengo, samba, sacana, biboca,
maconha, bagunça, jiló, cachimbo, cafungar, fungar, cabular, catinga,
catimba, ginga, lambada, cangaço, mocambo, moleque, miçanga, moqueca,
muamba, olelê-olalá, tutu, titica, xingar, quiabo, quitanda, quitute,
muxoxo, cochilo, banguela, cabaço, beleléu, zanzar, ziquizira,
songamonga, moringa, camundongo, babaca, senzala, mucama, macaco, babau,
caxumba, capanga, canga, tanga, lengalenga, mandinga, coroca, cotó,
fubá, moleque, cafuné, jagunço, meganha... sem falar, é claro, da grande
unanimidade nacional: a bunda!
Além disso, os pesquisadores vêm mostrando cada vez mais que o impacto
do banto sobre o português brasileiro não se restringe ao léxico, isto
é, às palavras. Muitas das características gramaticais próprias do
português brasileiro (algumas, aliás, exclusivas da nossa língua no
conjunto das línguas românicas e mesmo indo-europeias) podem ter origem
na transferência, para a língua que foram obrigados a aprender, de
traços gramaticais dos idiomas bantos falados pelos escravos.
Uma delas é a possibilidade de locuções adverbiais ocuparem a posição
de sujeito. Por mais natural que nós, brasileiros, consideremos uma
frase como “Esse elevador só cabe 8 pessoas” ou “A janela do meu quarto
não bate sol”, essas construções são desconhecidas não só do português
europeu, mas de todas as línguas românicas e também das demais línguas
indo-europeias.
Ora, nas línguas do grupo banto construções desse tipo são
perfeitamente comuns. Quando (se) a sociedade brasileira algum dia
deixar de ser uma das mais racistas do mundo, quem sabe o verdadeiro
impacto da cultura africana venha a ser definitivamente reconhecido,
valorizado e apreciado.
Retirada de: Jornal do Mario.com
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