Foi depois da conferência “Português do Brasil: a construção da
norma culta e as práticas de ensino”, na abertura do seminário da
Olimpíada, em Brasília, que a revista Na Ponta do Lápis
entrevistou o linguista, professor titular e ex-reitor da Universidade
Federal do Paraná, Carlos Alberto Faraco. Especialista em linguística
histórica, ele falou do percurso feito pela língua portuguesa em terras
brasileiras até tornar-se nosso idioma dominante. Também lembrou como o
país virou monolíngue, num movimento semelhante ao que procurou
silenciar e desqualifi car o português popular, falado pela maioria dos
brasileiros, em contraponto ao chamado padrão culto da língua. Para ele
“tem que se libertar dessa demonização e perceber por dentro a beleza da
diversidade linguística”.
Que relação existe entre o português brasileiro ou português do Brasil com a língua que se ensina nas escolas?
Nós temos uma história latino-americana com estágios interessantes.
O primeiro foi o estágio do espanto do europeu com a diversidade: “Como
é que nós vamos trabalhar com isso?”. Eles escolhem algumas línguas que
percebem ter certa distribuição geográfi ca, cultural e social. Começam
a usar essas línguas como veículos de comunicação com os indígenas, no
trabalho da catequese, no comércio etc. O mesmo movimento aconteceu do
México ao Chile e à Argentina, do século XVI ao XVII. Tem até um decreto
do rei espanhol, Felipe II, dizendo que no México tinha que se adotar
como língua oficial o náuatle, a língua dos astecas. Foi uma resposta à
diversidade que não foi de imposição da língua europeia, mas foi de usar
uma das línguas locais como estratégia de dominação. Quer dizer, o
dominador se entrega ao dominado, do ponto de vista linguístico, para
melhor realizar o seu projeto.
O que aconteceu no Brasil?
No Brasil foi a língua geral, o tupi, que acabou na língua geral
amazônica, que tem o nome de nheengatu. Como se tem a língua dos astecas
no México, a língua dos quéchuas no Peru, o guarani, aqui na bacia do
Paraná. Na medida em que a competição colonial aumenta com Holanda e
Inglaterra disputando os espaços com os portugueses e espanhóis, há um
movimento contrário para garantir o império. E aí é pela imposição da
língua, tentar subordinar as populações à língua europeia. Bem no começo
do século XVIII começam as decisões. Os reis da Espanha, em primeiro
lugar, dizendo que era proibido usar outra língua no ensino, na igreja,
no uso público que não fosse o espanhol. E no meio do século XVIII um
decreto do rei Carlos II da Espanha – para reforçar e estender o império
– torna obrigatório o uso do espanhol em todos os contextos,
extinguindo as outras línguas existentes. Um proje to muito claro de
política linguística que é a imposição da língua europeia e o
desaparecimento das línguas indígenas. Esse projeto, que podemos chamar
de monolinguismo, vai prevalecer desde o século XVIII até praticamente
hoje.
Qual é a visão geral da população sobre a nossa situação linguística?
O Brasil é monolíngue. É porque se fala uma única língua que se
compreende em todos os rincões do território nacional, em todas as
situações, mesmo tendo 180 línguas indígenas e, pelo menos, umas 40 ou
mais línguas de imigração. Mas quem é que considera isso como
característica do país? No século XVIII, num primeiro momento, foi o
silenciamento das línguas indígenas para colocar no lugar o português ou
o espanhol. Num segundo momento você vai ter no Brasil o silenciamento
das variedades populares da língua. Começamos a trabalhar numa ideia de
que o país não é só monolíngue, mas que tem uma variedade da língua que
merece cultivo e prestígio, enquanto é preciso silenciar a outra, o
“pretoguês”, a língua da maioria. Na década de 1930, vai acontecer o
terceiro momento, agravado com a Segunda Guerra: o silenciamento das
línguas de imigração. O Estado bra sileiro vai proibir o uso e o ensino
em italiano, em japonês, em alemão. São diferentes momentos em que o
Estado e a elite política impõem o monolinguismo. Claro, se isso é um
valor da sociedade, vai transitar também na escola. Ao ver os programas
de ensino, as reformas da época, a programação era muito clara: ensinar
um determinado português. São mais de trezentos anos em que se
estabelece e se impõe uma visão monolinguista de silenciamento de toda a
diversidade, seja ela dos indígenas, dos imigrantes ou do português
popular. Cria-se a imagem de uma pureza em direção ao que se deve
caminhar. Só que o país tem uma história, uma dinâmica social que
atropela tudo isso. Quando a escola era voltada para uma minoria, até
funcionava porque essa própria minoria já vinha com esse português
prestigiado para a escola – era só polir um pouco. Agora, quando a
população brasileira invade a escola, justamente a massa que fi cou fora
do teto cultural e educacional, você tem outras variedades da língua,
outra experiência cultural. Isso é muito recente na história do Brasil.
Sobre isso tivemos uma polêmica recente, a do livro didático Para uma vida melhor. A autora e o livro foram atacados por diversos setores. Que questões estão por trás disso?
É um livro altamente conservador no ensino de português.
Caprichado, trabalha com as questões da morfossintaxe, da pontuação etc.
Está voltado para um público específi co da Educação de Jovens e
Adultos, dos que não puderam completar o ensino regular. A autora traz a
variedade linguística como contraste, patamar de comparação. Trabalha
com dois eixos fundamentais. Primeiro, ninguém pode ser discriminado
pela língua que fala. Quando eu digo: “nós pega peixe”, pode? Pode,
porque as pessoas, historicamente, produzem esse português. Segundo, as
pessoas têm direito ao acesso à expressão culta. Então, ela apresenta a
expressão culta. Os que criticaram a obra não têm uma compreensão do que
seja a história e a realidade sociolinguística do Brasil. Um grande
segmento social fala “nós pega peixe”. Isso tem a ver com a história do
país, o contato da língua inicial, o tipo de português que se produziu e
que se naturalizou nesse processo, o fato de que nunca tiveram acesso à
escola. O erro não está na autora. O equívoco está em não reconhecer a
história, a realidade sociolinguística do país. E reconhecer isso não
significa deixar que essas pessoas continuem onde estão.
É possível expressar coisas complexas independentemente de se usar ou não a norma culta?
Sim. É preciso lembrar o que Gramsci dizia: todo ser humano é um
filósofo. Independendo da sua condição, todo ser humano é um filósofo. É
claro que você tem que pensar nas especializações da cultura. Você não
pode desconsiderar o que a humanidade produziu a partir da cultura
escrita enquanto literatura, enquanto fi losofi a, ciência, matemática. É
claro que há uma especialização. A história produziu uma fi - losofi a
que é fundamentalmente escrita, que tem um tipo de vocabulário, um tipo
de argumento, um tipo de expressão que não é a mesma de um analfabeto. O
analfabeto também é um filósofo, ele produz um discurso. Essas pessoas
não tiveram acesso à língua escrita, mas produzem sentidos, interpretam,
contam histórias, narram, compõem músicas; portanto, a oratura é uma
experiência muito anterior à literatura, no sentido da escrita. A
sociedade complexa precisa de gente cada vez mais qualificada em termos
de cultura escrita, em formação científica. Mas isso não significa que
você tenha que desvalorizar o outro lado, a experiência de quem passa
por outra história.
Uma provocação: gramática é fundamental para escrever ou para aprender a escrever?
Eu não sei se é. Tem uma frase do Autran Dourado que diz assim com
relação à gramática: “É preciso aprender a gramática, para depois
esquecê-la”. Vamos colocar isso de outro jeito: para você refinar a sua
expressão escrita é importante desenvolver consciência sobre como a
língua é e como ela funciona estruturalmente. Vamos pensar sobre a
organização sintática como parte do processo. Então, quando eu estou
lendo um texto, de repente parar num determinado momento, destacar e
analisar um segmento e perceber que o autor usou orações coordenadas,
que ele poderia ter usado subordinadas. É importante ter essa
consciência, assim como ter consciência do funcionamento social da
língua, de que você varia a língua conforme o contexto em que você está,
conforme o gênero. Quer dizer, escrever um conto é diferente de
escrever um poema; fazer um sermão é diferente de narrar um jogo de
futebol. Há um processo todo que nós fazemos na adequação da linguagem.
As duas coisas são importantes: língua na dinâmica interacional, social,
e a estrutura da língua. A possibilidade de você rastrear no
vocabulário palavras mais precisas para aquilo que você quer dizer, essa
reflexão é fundamental. Agora, qual é o problema da gramática? A
gramática é ensinada escolasticamente: você dá o conceito, o exemplo, e
faz exercício. Isso não faz sentido para quem está se aproximando da
língua e precisa compreender como ela funciona.
Em sala de aula, como o professor pode lidar com as questões do preconceito linguístico?
A primeira coisa é o professor ter uma atitude positiva, olhar e
sentir a variedade linguística como algo positivo. Olhar a beleza da
diversidade, uma das grandes características do ser humano. Para isso
ele precisa ter uma compreensão da história do português. O sujeito que
diz: “Nóis pega peixe”; ele não diz isso porque é preguiçoso ou
ignorante. Ele diz isso porque pertence a um grupo social cuja história
produziu esse tipo de variedade de português. Olhar a história dessas
variedades é o que dá outro patamar para lidar com elas. Num país que
lutou, por trezentos anos, pela ideologia do monolinguismo, a variedade
linguística é demonizada nesse quadro imaginário. Primeiro, tem que se
libertar dessa demonização e perceber por dentro a beleza da diversidade
linguística, a cara do país linguisticamente tão diversa. Segundo, vai
ter que raciocinar com os alunos, mostrando o absurdo do preconceito.
Mas isso não pode começar nem muito cedo, nem muito tarde. Existe um
estudo fundamental sobre isso que diz: as crianças de 3 a 4 anos
percebem a variação linguística, imitam, inclusive, variedades
diferentes, mas elas não têm ainda percepção da valoração social que
recobre as variedades. Na pré-adolescência, o jovem percebe que quando
se fala diferente tem reações diferentes – positivas ou negativas.
Portanto, eu diria que no fi m do Ensino Fundamental e no começo do
Ensino Médio é preciso fazer essa discussão, compreender que a
diversidade não é sinônimo de ignorância. Infelizmente, nós temos pouco
material disponível porque essas variedades num país monolíngue são
inaudíveis, embora elas estejam ressoando no nosso ouvido
permanentemente. E não há registros técnicos sufi - cientes dessas
variedades para que se possa preparar material didático que alimente e
ofereça ao aluno a diversidade, não folclorizada, porque folclorizar é
fácil. Nos anos 1980, saiu um livro, Os peões do Grande ABC
[Luís Flávio Rinho. Petrópolis: Vozes, 1980], um levantamento
sociológico com os peões que eram migrantes. Praticamente todos
analfabetos; portanto, falavam variedades do português popular. Os
textos foram transcritos preservando a fala das entrevistas. Nas minhas
aulas eu usei os textos desse livro. Tem coisas belíssimas. O peão
falando, por exemplo, da hora que se aproxima dele bater o ponto. A
alegria que toma conta da pessoa que termina o dia de trabalho, vai se
aproximando a hora de ir para a fila, uma empurração geral! Ele diz
assim: “É o desejo de liberdade”. Veja a interpretação dele. Mas isso
dito num português popular. Isso é material de memória, material de
reflexão, literatura oral. Nós precisaríamos coletar tudo, constituir um
registro desse patrimônio para daí transformar em material didático,
porque essa coisa de só trazer as tirinhas do Chico Bento não dá certo.
Isso é um estereótipo e não tem a ver realmente com o problema
sociolinguístico brasileiro. O professor tem que ter essa abertura,
atitude de respeito com relação ao aluno, para ele ser capaz de mostrar
ao aluno as adequações num contexo.
Estamos inaugurando com o professor Carlos Alberto Faraco
uma nova seção. Um mote é lançado e o entrevistado tem que responder em
poucas palavras, como no Twitter. “Para um falador é difícil, diria
terrível”, afirmou o linguista. Veja o resultado:
Retirado do site da Olímpiada de Língua Portuguesa